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Igualdade de gênero e política de cuidados: por que isso importa para o G20 e o mundo?

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28

março 2024

por

Camila Santos

Para promover verdadeiramente o desenvolvimento sustentável e abordar a causa raiz de outros problemas, como a pobreza, é necessário combater a desigualdade de gênero.

Camila dos Santos*

A próxima Cúpula do G20 no Brasil se concentrará em promover a inclusão social, combater a fome e a pobreza, possibilitar uma transição energética justa, promover o desenvolvimento sustentável e reformar as instituições multilaterais como prioridades gerais. Cortando transversalmente todas essas agendas, é crucial discutir o impacto da desigualdade de gênero e seus efeitos ao exacerbar as múltiplas crises enfrentadas atualmente.

Globalmente, os homens possuem 50% mais riqueza do que as mulheres e dominam posições de poder político e econômico, com apenas 18% dos ministros, 24% dos parlamentares e 34% dos cargos gerenciais no mundo sendo ocupados por mulheres. Esses números revelam uma desigualdade enraizada e perpetuada pela distribuição desigual do trabalho doméstico não remunerado e do trabalho de cuidado. Segundo a Oxfam (2020), mulheres e meninas — especialmente aquelas que vivem na pobreza e pertencem a grupos marginalizados — dedicam 12,5 bilhões de horas diárias ao trabalho de cuidado não remunerado, juntamente com muitas horas adicionais de trabalho em troca de salários inadequados e desiguais. O trabalho do cuidado realizado por essas mulheres não apenas sustenta as famílias e garante uma força de trabalho saudável e produtiva para a sociedade, mas também contribui com pelo menos US$ 10,8 trilhões para a economia global.

Considerando a imensa potência produtiva da economia do cuidado, um dos pontos-chave para as discussões no G20 deste ano será o combate à desigualdade de gênero e a compreensão de que essa questão está no cerne da luta contra a pobreza e da promoção do desenvolvimento verdadeiramente sustentável.

Historicamente, a organização social do trabalho de cuidado provou ser injusta e desigual, já que as mulheres muitas vezes são designadas como responsáveis primárias ou exclusivas por essas atividades. Mulheres negras e imigrantes do sexo feminino suportam um fardo ainda maior de tensão física, como nos alerta Françoise Vergés sobre a feminização e racialização da indústria de limpeza em todo o mundo. Ao perguntar “Quem limpa o mundo?”, Vergés nos lembra que as práticas de limpeza e cuidado se tornaram inseparáveis de uma economia que divide os corpos entre aqueles com direito a uma boa saúde e aqueles cuja saúde não importa.

Oportunidades limitadas refletem as responsabilidades desproporcionais de cuidados atribuídas a meninas e mulheres, prejudicando sua educação e emprego. O tempo dedicado ao cuidado cria barreiras, perpetuando a pobreza multidimensional e desigualdades de gênero, classe, raça, etnia e território. No Brasil, as mulheres investem quase 22 horas semanais em tarefas domésticas e de cuidado não remuneradas, em comparação com as 11 horas dos homens. Mulheres negras, em particular, dedicam ainda mais tempo, totalizando 23,5 horas por semana, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

No resto do mundo, a perspectiva não parece mais promissora. De acordo com o Global Gender Gap  Report  de 2023, no ritmo atual de progresso, levaremos ao menos 131 anos para alcançar a plena igualdade de gênero em todo o mundo. O próprio Fórum Econômico Mundial recomenda aumentar a participação econômica das mulheres e alcançar a igualdade de gênero em posições de liderança como fatores-chave para abordar lacunas de gênero mais amplas em famílias, sociedades e economias.

Para reverter essa situação desigual, os governos precisarão expandir e melhorar as políticas públicas, como fornecer acesso a creches acessíveis, licença parental e serviços de saúde e cuidados para idosos, com o objetivo de promover o bem-estar dos indivíduos e da economia como um todo. Além disso, várias ações devem ser promovidas, incluindo garantir trabalho decente para todos os cuidadores; reconhecer e redistribuir o trabalho doméstico e de cuidado não remunerado; expandir incentivos para aumento da educação e frequência escolar; garantir a qualificação e retenção de mulheres em empregos competitivos; e defender o direito ao planejamento familiar e à saúde reprodutiva.

No entanto, o imenso desafio de abordar questões da economia do cuidado na tomada de decisões do G20 revela que as desigualdades de gênero também se manifestam de maneira diferente em uma escala geográfica. Enquanto a Europa (com 76,3%) e a América do Norte (75%) lideram em paridade de gênero globalmente, o Oriente Médio e o Norte da África (62,6%) foram as regiões mais desiguais para mulheres viverem em 2023. Isso indica que os esforços em direção à equidade de gênero também devem orientar a tão esperada reforma do sistema multilateral, outro tema central na agenda do G20 este ano. A sub-representação histórica de mulheres em posições de alto nível em organizações multilaterais — especialmente aquelas do Sul Global — impacta significativamente como soluções são apresentadas, negociadas e implementadas em seus respectivos territórios. Afinal, se as mulheres são as principais cuidadoras e contribuintes para a sobrevivência de nossas sociedades, elas também devem ter voz sobre como essas sociedades serão governadas.

A este respeito, a iniciativa Blue Smoke lança luz sobre eleições e nomeações para cargos de alto nível dentro das Nações Unidas (ONU) e enfatiza que, até 2022, a representação de mulheres no sistema da ONU era de 46,6%. No entanto, isso não significou um passo em direção à equidade. Ao mesmo tempo, existem organizações dentro do sistema da ONU que nunca foram lideradas por uma mulher. Isto torna o esforço em garantir que as mulheres sejam representadas em todos os aspectos da liderança e tomada de decisões uma prioridade ainda mais crítica. Ao examinar os quatro principais órgãos da ONU que coordenam ações globais sobre mudança climática, desenvolvimento e biodiversidade – o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) – a iniciativa Blue Smoke descobriu que, coletivamente, esses quatro órgãos tinham apenas 20% de nomeações femininas em cargos de alto nível.

Ao reconhecer o cuidado como um bem público essencial e crucial para a economia de nossas sociedades e Estados, os líderes mundiais terão a oportunidade de colocar a garantia do direito ao cuidado e à existência no cerne de suas estratégias. Esta abordagem será crucial não apenas na busca pela igualdade de gênero, mas também na sustentação de nossas populações nos desafios atuais e futuros, como o caminho para uma transição climática justa e inclusiva. O impacto das emergências globais de clima e saúde, juntamente com os desafios de cuidado de uma população cada vez mais envelhecida e com a implementação de medidas de austeridade estatais que reduzem o investimento público em seguridade social, intensificou a crise para indivíduos em papéis de cuidado. Assim, a garantia de cuidados para a força de trabalho é uma questão de política pública cada vez mais premente.

Em 2023, sob a presidência indiana do G20, a incorporação do “desenvolvimento liderado por mulheres” destacou o papel fundamental desempenhado pelas mulheres empreendedoras no impulso das economias nacionais. O conceito reconhece as contribuições cruciais das mulheres para o crescimento do PIB, criação de empregos e provisão de bens e serviços essenciais. À medida que o Brasil assume o controle da presidência do G20 este ano, alavancar essa abordagem para incluir a política de cuidados é imprescindível. Alcançar este objetivo vai além de ser recomendável; exige uma reavaliação fundamental de nosso arcabouço multilateral. Isso envolve não apenas repensar nossa abordagem a partir de uma perspectiva decolonial e de igualdade de gênero, mas também integrar ativamente mais especialistas e profissionais do Sul Global na discussão e nas mesas de tomada de decisões.

Reconhecer que o cuidado é tanto uma necessidade quanto um direito de todos os seres humanos é essencial. Nossa capacidade de navegar pelas crises presentes e futuras depende do reconhecimento de que a responsabilidade pelo trabalho de cuidado não é — e não pode ser — restrita pelo gênero. Em 2024, o G20 avançará na redução das desigualdades se reconhecer e adotar medidas para garantir o cuidado como um bem público e uma responsabilidade dos Estados, essencial para a economia e a preservação da vida em nossas sociedades. Superar as desigualdades de gênero requer capacitar as mulheres a terem liberdade e desfrutar de seu tempo e direitos em outros aspectos da vida. É um direito de todas as mulheres, além de ser economicamente necessário para nossa sobrevivência na sociedade.

O desafio da presidência brasileira do G20

Liderando o G20 em 2024, o Brasil preside a estreia do Grupo de Trabalho para o Empoderamento das Mulheres na trilha de sherpas. A iniciativa, apresentada pela primeira vez durante a presidência indiana, gerou expectativas de ampla cooperação internacional sobre o tema. Entre as prioridades do grupo estão a igualdade, a autonomia econômica das mulheres, o combate à misoginia e à violência, e a justiça climática.

Em nível federal, o governo brasileiro também tem liderado um esforço inicial, mas promissor, para redesenhar sua política de cuidados. Além de consultas e chamadas para participação pública, o governo brasileiro estabeleceu um grupo de trabalho interministerial para definir os componentes que estruturarão e organizarão a Política Nacional de Cuidados no Brasil. O Grupo de Trabalho de Cuidados (GTI-Cuidados) é composto por 15 agências governamentais federais e três entidades de pesquisa, que, até o final de 2024, devem avaliar a disponibilidade atual de políticas de cuidados e as necessidades urgentes das mulheres brasileiras.

Ambas as iniciativas poderão posicionar o Brasil como um líder necessário nessa questão, especialmente entre os países do Sul Global, mas isso não diminui os desafios a serem enfrentados. Afinal, o G20 é um grupo liderado por consenso, e será crucial para os países membros concordarem sobre como entregar e avançar com políticas mais equitativas para as mulheres. Este esforço deve ser visto como uma construção intersectorial, a ser moldada tanto pelos governos quanto pela sociedade civil.

Nesse sentido, as recomendações provenientes dos grupos de engajamento do G20 serão cruciais. Além dos esforços do Women 20, esses grupos, como o Business 20, Think 20 e Civil 20, já incorporaram a igualdade de gênero como uma ação transversal em suas discussões. Isso destaca a importância de uma abordagem inclusiva envolvendo vários setores para o alcance de progressos significativos.

*Este artigo foi publicado pela primeira vez no site da Observer Research Foundation, como um capítulo do livro “Raisina Chronicles: India’s Global Public Square”. 

Notas sobre a contribuidora

Camila dos Santos é Assessora de Relações Internacionais e Cooperação no Gabinete do Prefeito na Prefeitura do Rio de Janeiro, Brasil. Ela possui mestrado e doutorado em Política Internacional pelo Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). As opiniões expressas aqui são de natureza pessoal e não refletem a posição da instituição à qual a autora está afiliada.